Ao Mestre com Carinho

Ao Mestre com Carinho

Geraldo Resende

Era 1977, mas me lembro como se fosse hoje. Eu estava no segundo ano do curso de Medicina, na Universidade Federal do Ceará. Chegar até ali foi uma vitória para um menino vindo de uma família humilde, como eu. Para vencer, tive que me esforçar muito, contar com apoio da minha família e com a imprescindível ajuda de muitos amigos, entre os quais, faço questão de citar o Dr. Maranhão.

Lembro-me da chegada dele a Dourados. E ele chegou por aqui no que convencionamos chamar de segunda geração dos pioneiros, como um médico especialista em ginecologia e obstetrícia, formado em uma das melhores escolas de medicina do país, a faculdade de medicina de Botucatu, em São Paulo. Ele fazia a diferença, numa época em que boa parte dos médicos era generalista, ou seja, tinha que entender de tudo um pouco. Dr. Maranhão, porém, já chegava com o título de gineco-obstetra.

Um cidadão com C maiúsculo, um profissional competente e dedicado, com quem aprendi pela primeira vez um conceito que marcaria para sempre a minha vida: a Medicina Social. O doutor Maranhão aplicava na prática, no dia-a-dia, o que ele dizia que era a sua contribuição para melhorar o mundo – salvar vidas sem se importar com a classe social ou a capacidade financeira dos seus pacientes.

Graças a ele, acabamos com um verdadeiro “apartheid” que impedia que pessoas humildes, sem recursos tivessem atendimento digno nos hospitais de Dourados. Ele dedicava uma parte do seu tempo para atender, no antigo Hospital Regional, os inscritos no FUNRURAL e os chamados “não pagantes”. Felizmente, hoje, esse grupo social está plenamente coberto pelo SUS – um avanço em termos de saúde pública, que ainda precisa de muitos ajustes, mas que não tem correlato no mundo.

Acima de tudo, o doutor Maranhão foi e ainda é um homem solidário. Formou, com outro grupo de médicos, o que nós à época, jovens estudantes, chamávamos de segunda geração de pioneiros da medicina em Dourados. Fazer parte desse grupo era motivo de disputa e de orgulho para nós. Eu passava as minhas férias universitárias trabalhando e aprendendo com eles. Na companhia do Dr. Maranhão dei os primeiros passos dentro do complexo mundo da Medicina. Além de abrir as portas do seu consultório e dos hospitais de Dourados, ele me ensinou a lidar com situações difíceis, a tomar decisões, a fazer escolhas e a não ter medo de assumir responsabilidades. Ele foi o meu mestre e meu protetor.

Sempre tivemos uma relação que transcendeu à formalidade. Eu fazia questão de ser um dos seus principais auxiliares, trabalhando com ele durante as férias, recebia em troca não só o aprendizado, mas um auxílio fundamental para a conclusão do meu curso de medicina, no Ceará. Mas, muito mais do que qualquer coisa, ganhei dele um ensinamento para o resto da vida – o exercício da profissão com dignidade.

Depois, na fase final da minha formação, ele foi um dos maiores incentivadores para que eu fosse buscar em São Paulo o conhecimento que me faltava, a residência médica, que terminei por fazer em uma das escolas mais respeitadas do país, a Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto. Quando voltei a Dourados fui trabalhar com vários colegas, entre eles, o Dr. Maranhão. São inúmeras as intervenções e cirurgias, da nossa especialidade, que fizemos em conjunto, em longas jornadas, dia e noite.

Com ele vivi momento de euforia, quando conseguíamos aliviar a dor e o sofrimento das pessoas, cada vez que usávamos o nosso conhecimento para salvar vidas. Com ele também dividi momentos de angústia quando todo o seu conhecimento e toda a sua capacidade profissional não foram suficientes para superar o drama da primeira gravidez da sua esposa. A morte do primeiro filho dele foi muito marcante. Por isso eu sei que ele, mais do que qualquer um sabe a dor de perder uma vida, ainda mais quando se trata da vida de seu próprio filho.

Graças à dedicação do Dr. Maranhão inúmeras vidas foram salvas em Dourados e região. Não dá para contar as vezes em que ele realizou partos, cesarianas e outros tipos de cirurgias relacionadas à nossa especialidade, em pessoas que não tinham recursos para pagar. Nessas condições, ele era o primeiro a convocar a sua equipe médica e pedir que abrissem mão dos seus honorários.

Foi o responsável pelo fim de um verdadeiro “apartheid” social, garantindo atendimento de qualidade a quem de fato precisava e não dispunha de recursos ou condições para pagar tratamento particular. Mais tarde, ele teve um papel decisivo na implantação da Universidade Federal da Grande Dourados, dedicando-se como professor voluntário do curso de medicina e ajudando a consolidar essa que é a maior conquista da educação de nossa cidade.

Ainda hoje, atua como médico do SUS, dando plantão no Hospital da Mulher, prestando um serviço inestimável à população da nossa cidade. Ele poderia não estar mais trabalhando, mas faz questão de conduzir os exames como ultra-sonografia, feitos no ambulatório da Clínica de Atendimento à Mulher.

A medicina, nossa escolha profissional, principalmente quando acertamos e salvamos vidas, parece nos deixar mais próximos de Deus. Mas em verdade somos humanos, como qualquer outro ser. Não somos infalíveis e muitas vezes nos vemos de mãos atadas, incapazes de mudar a dura realidade, diante da perda de algum paciente.

Faço questão de dizer tudo isso porque confio na capacidade do Dr. Maranhão, sou testemunha de que ele não desiste nunca e enquanto enxergar uma possibilidade de salvar uma vida vai lutar por ela. A fatalidade que aconteceu e que resultou na sua “condenação” carrega em si mesmo dois dramas. O de quem perdeu um filho e o de quem, outra vez, viu-se impotente diante da morte de uma criança. O dia em que a notícia ganhou as páginas dos jornais foi um dos mais tristes da vida dele, por coincidência, dia do seu aniversário, dez de abril.

Entretanto, eu tenho confiança de que esta sentença, dada em primeira instância será reformada, restabelecendo a imagem do mestre e do profissional respeitado que o Dr. Maranhão sempre teve.

Não cabe aqui medir o tamanho da dor de um e de outro. Cabe prestar a minha solidariedade com quem foi e será sempre o meu mestre. E também cabe lembrar que ninguém pode condená-lo por uma fatalidade. O exemplo de homem que é o Dr. Maranhão se reflete na formação dos seus filhos. Criados à imagem e semelhança do pai. Sua filha, formada na mesma cidade de Botucatu e fazendo hoje especialização em psiquiatria, tenho certeza dará seguimento ao compromisso que o Dr. Maranhão sempre teve com a medicina.

Seu filho, advogado e já mestre com louvor, tentará no Instituto Rio Branco, investir na carreira de diplomata e assim, realizar o sonho de bem representar o nosso país, mundo à fora. Ele já mostra uma rara capacidade para o exercício da profissão, comprovando aqui a frase de que “boa árvore somente pode dar bons frutos”.

Os dois são fonte de inspiração e de conforto para ele e certamente o ajudarão a enfrentar e vencer mais esse momento difícil da vida. Faço questão de encerrar dando o testemunho de lealdade e solidariedade com o Dr. Maranhão, que me ensinou a nunca desistir de lutar. E de quem vai servir de exemplo para muitas e muitas gerações de médicos.

Médico e deputado federal PMDB-MS


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