Reportagem Especial Globo: Epidemia do Crack
Uma série de reportagens revela como a droga se espalha de forma silenciosa pelo interior do Brasil. A primeira delas mostra trabalhadores rurais no Paraná que usam o crack como forma de doping.
Três horas da tarde de uma quarta-feira tranqüila em Paranavaí. A rotina pacata da cidade do interior do Paraná não resiste a uma olhada mais atenta.
Com uma câmera escondida nos aproximamos do homem que aparentemente aprecia a tarde sentado na praça. A pergunta é seca, sem rodeios.
“Ou véio,.. beleza. Sabe onde pode arrumar uma pedra aí?” “Pedra?” “É” “Tô ligado não...”
O rapaz desconfia das pessoas que nunca tinha visto, faz algumas perguntas, e acaba cedendo.
“Quanto você ia catar?” “Ah, umas duas pedras”.
Nosso produtor pergunta se é possível também comprar maconha. A resposta do traficante, é a síntese do que aconteceu na cidade.
“Maconha não tem, só tem a pedra mano, joga o troco ali que eu pego lá procê lá do outro lado”. “Quanto tá fera?” “Deizão cada uma...”
Quando o homem sai para buscar a droga, desistimos da compra. Paranavaí fica no noroeste do Paraná, distante 500 quilômetros de Curitiba. Vive da agricultura e da pecuária e tem aproximadamente 75 mil habitantes, que nos últimos quatro anos viram perplexos a popularização do crack.Sem alarde, a pedra foi ganhando a preferência de usuários de outras drogas.
“Não tinha tanto, eram poucos que tinham”, conta um usuário. JG: Hoje quem quiser comprar acha fácil? “É dois palito, hein? É mais fácil que pão”.
No Brasil, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde alerta para uma epidemia. Só no Rio Grande do Sul estima-se que a cada mil habitantes existam cinco usuários.
“A gente tem trabalhar isso como se fosse uma epidemia de dengue, que quando dá os surtos faltam leitos, faltam estruturas, ambulatórios e tal. A mesma coisa, com essa subida do crack, nós temos que organizar o sistema se saúde mental, multiplicar e depois garantir que essa pessoa seja acompanhada. Não se pode perder de vista o dependente”, alerta Osmar Terra, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.O Ministério da Saúde reconhece que o crack se alastrou, mas nega que haja uma epidemia.
“Eu acho que o consumo tem mais se alastrado por outras regiões do país, por regiões que não existiam, como por exemplo, interior do nordeste, e outras cidades no interior dos estados e que não acontecia antes. Então eu acho que isto tem um aumento de consumo, mas eu acho que tem que ser bastante cauteloso ao se falar de uma epidemia”, fala Francisco Cordeiro, assistente Saúde Mental – Ministério da Saúde.
“Há uma epidemia de crack. Se você considerar que epidemia é um número de casos de uma determinada doença, num determinado local, você vai pegar cidades onde você vê crescer assustadoramente o consumo de crack”, diz Andrea Domanico, psicóloga e doutora pela UFBA.
Nas cidades do interior, os centros de atenção aos dependentes de álcool e drogas viraram o termômetro dos efeitos do crack.
“Ele pode ter passado por diversas drogas, mas foi o crack que fez com que ele buscasse algum tipo de ajuda", alega Carla Amaral Barros, psicóloga.
Aqui vemos ir por terra uma idéia bastante difundida. A de que o crack se espalha por ser uma droga barata. Na verdade o crack custa tudo o que o viciado tiver.
“Um cara chegou uma vez com um perfume pela metade, e me falou: me dá uma aí, só uma. Aquele desespero que faltava chorar. Eu falei que não ia pegar o perfume. Ele falou: então espera um pouco. Depois ele voltou com uma caixa de correio. Eu falei que não ia pegar a caixa do correio. Ele voltou pra trás e voltou com um quadro de bicicleta. Eu dei uma no quadro de bicicleta. Ele foi, demorou uns 15 minutos e voltou com o pneu da bicicleta. Eu falei que não ia pegar o pneu da bicicleta. Aí eu falei pra ele: eu preciso de um DVD. Ele demorou meia hora, mas voltou com o DVD”, conta o jovem.
Histórias que se repetem nas esquinas da cidade. Ainda é dia quando flagramos um garoto mostrando um ferro de passar roupa para várias pessoas.
As conversas são em volta do banheiro público do terminal de ônibus da cidade. Um conhecido ponto de uso de crack. Mas nem todos se abrigam no banheiro para consumir a droga, principalmente à noite.
Uma garota senta encostada em uma parede. Calmamente prepara o cachimbo e acende a pedra. Ao lado dela, outra pessoa também usa a droga. Quando se levanta, percebemos que é o mesmo garoto que chegou no final da tarde, agora sem o ferro de passar.
Outro jovem nem se da ao trabalho de procurar um lugar escondido. Fuma no ponto de ônibus, enquanto carros e motos passam na frente. Depois tranquilamente joga a lata fora.